Por Thais Lozada Moreira*
São cada vez mais comuns as ações que chegam à apreciação do Poder Judiciário nas quais se pretende indenização por danos morais e/ou materiais decorrentes da violação do dever de fidelidade conjugal, ou seja, decorrentes de traição entre cônjuges ou companheiros.
O dever de indenizar do cônjuge infiel se trata de matéria que causa controvérsia entre os operadores do direito, sendo certo que a sua caracterização – ao contrário do que possa parecer aos leigos – merece ser dissociada de juízos de valor e de convicções pessoais sobre manifestações de comportamento social, devendo ser pautada, por outro lado, pela análise dos requisitos gerais da responsabilidade civil.
Como exemplo da prejudicial interferência de elementos extrajurídicos no julgamento de pedidos de indenização em casos de infidelidade conjugal, pode-se mencionar a recente decisão, prolatada em 02/06/2021, pela 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, no bojo da qual restou afastado o pedido de indenização por danos morais formulado por uma mulher em razão do relacionamento extraconjugal mantido por seu marido, o qual, segundo suas alegações, teriam gerado a ela danos passíveis de reparação civil.
Na decisão, o Relator do processo, Desembargador Marco Antônio Ibrahim, reconheceu que o adultério em caso de relacionamento conjugal é, em tese, causa de inegável frustração e que, não raro, leva a quadros de depressão e, até mesmo, a “resultados trágicos”. Contudo, o julgador justificou a negativa ao pedido reparatório no entendimento de que “na sociedade pós-moderna, em que os relacionamentos são descartáveis, os compromissos de namorados, noivos e cônjuges se tornaram meramente retóricos e não atraem qualquer tipo de sanção moral quando descumpridos. Nessa trilha, o Direito, enquanto mera expressão do comportamento social, tem sido interpretado com a mesma permissividade que o adultério é encarado pela sociedade”. Em sua fundamentação, o julgador citou, ainda, a obra intitulada “Amor Líquido – Sobre a fragilidade dos laços humanos”, de autoria do sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman, a qual revelaria “uma incômoda verdade, qual seja, a de que onde há dois não há certeza” . Assim, em que pese ter reconhecido a existência de “indícios evidentes” acerca dos fatos que levaram à propositura da ação, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro entendeu que não haveria direito à indenização pela traição marital¹.
Com a devida vênia, sem adentrar nas questões fáticas e probatórias do caso em comento, o entendimento externado no referido julgado revela uma distorção da função do ordenamento jurídico. O Direito, sem dúvida, de um lado, emana da sociedade, ‘resultante do poder social que o apoia e o impõe’, como ‘reflexo dos objetivos, valores e necessidades sociais’, mas, de outro lado, o Direito ‘influencia a sociedade como um instrumento de controle’, nas palavras do Ministro Dias Toffoli, em brilhante voto proferido no acórdão que firmou Tese de Repercussão Geral sobre a monogamia no STF, no julgamento do Recurso Extraordinário 1.045.273/SE, de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes.
Realmente a principal função do Direito é a organização da sociedade, em que há normas que estão muito acima da autonomia da vontade, por sua natureza cogente, obrigatória, imperativa, como é a norma legal que impõe aos cônjuges o dever de fidelidade (Código Civil, art. 1.566, I).
Note-se que não é a ruptura de um casamento que, por si só, gera o direito à indenização, inobstante o rompimento possa causar abalo de ordem emocional, pela ‘falência’ da relação conjugal ou frustração de um projeto de que o casamento duraria para sempre.
O direito à indenização exsurge da violação de um dever conjugal, na hipótese em análise, do descumprimento do dever de fidelidade, que causa o dano moral.
A aplicação dos princípios da responsabilidade civil nas relações de família, assim como nas demais relações jurídicas, é fundamentada na regra geral da responsabilidade civil, especificamente no artigo 186 do Código Civil, integrante da Parte Geral do referido diploma legal e que se aplica, portanto, a todos os livros respectivos, dentre os quais está o Livro do Direito de Família. Essa regra estabelece que “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
Os deveres dos cônjuges (art.1.566, CC) e dos companheiros (art. 1.724, CC), são recíprocos entre eles, de modo que o dever de um corresponde ao direito do outro. Entendimento em sentido contrário equivaleria a reduzir os deveres conjugais e convivenciais a meras recomendações, notadamente porquanto deixaria sem consequências eventuais infrações, desprotegendo, assim, a pessoa dos cônjuges e companheiros quanto aos efeitos pessoais da união.
É, portanto, diante do descumprimento de um dever que exsurge a violação de um direito, a configurar a prática de ato ilícito, nos termos dos artigos 186 do Código Civil, ato ilícito este que, ao causar um dano, sujeita o causador deste dano ao pagamento da indenização.
Verifica-se, em suma, que o desamor, por si só, não tem o condão de gerar o direito à indenização, porque amor não é direito ou dever. Por outro lado, uma vez preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil: ação que viola o dever/direito conjugal à fidelidade e dano moral e/ou material decorrente da traição, nos termos da legislação brasileira, mostram-se aplicáveis os princípios reparatórios.
A despeito da aparente normalização que a traição conjugal possa ter adquirido para alguns na sociedade contemporânea, não há como negar que o ordenamento jurídico brasileiro vigente, por meio do instituto da responsabilidade civil, se mostra apto a tutelar os casos em que esta ruptura ocorre pelo descumprimento de deveres expressamente estabelecidos pela legislação, com danos ao consorte vitimado.
Após muitos anos de vazio jurisprudencial, com a defesa de Tese de Doutoramento pelo Sócia Fundadora de RBTSSA sobre a Reparação Civil na Separação e no Divórcio, perante a Faculdade de Direito da USP, formou-se jurisprudência pela aplicação dos princípios da responsabilidade civil nas relações de casamento e de união estável, da qual são extraídos os principais dados doutrinários deste artigo².
A doutrina nacional reconhece a possibilidade de aplicação do instituto da responsabilidade civil nas relações familiares³, assim como a jurisprudência pátria tem relevantes decisões sobre o tema, especificamente quanto ao cabimento de indenização em casos de infidelidade.
Com efeito, é possível constatar diversos julgados – inclusive prolatados após a Emenda nº 66 de 2010 – que admitem o pleito indenizatório em casos de infidelidade conjugal. A título exemplificativo, cita-se decisão em que o Tribunal de Justiça de São Paulo reputou como abusiva a conduta do cônjuge infiel que, após a separação e sem justificativa plausível, decidiu morar com a amante em residência próxima a de sua ex-esposa e filhas, reconhecendo o dever de indenizar neste caso, sob o entendimento de que “a conduta do apelante posterior ao adultério, justifica o dever de indenizar, caracterizado o ilícito, na modalidade de abuso de direito, pois este excedeu manifestamente seu direito, violando os limites impostos pela boa-fé ou pelos bons costumes (art. 187 do CC)” (TJSP, Apelação nº 0322703-37.2009.8.26.0000, 4ª Câmara de Direito Privado. Des. Rel. Teixeira Leite, j. 12.04.12).
Em outro caso, o Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a condenação de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) imposta ao cônjuge infiel. Na hipótese, reconheceu-se o dever de indenizar em razão da situação vexatória e humilhante causada à ex-esposa, que era professora na instituição de ensino em que o ex-marido era diretor, e na qual circulavam, sistematicamente, comentários entre os funcionários sobre as traições do marido, inclusive, com mulheres no mesmo ambiente de trabalho. Assim, reconheceu-se que “...o ato cometido com desrespeito ao cônjuge, mediante conduta manifestamente ofensiva, gera a obrigação de indenizar o dano moral suportado” (TJSP, Apelação nº 0099514-82.2007.8.26.0000, 8ª Câmara de Direito Privado, Des. Rel. Pedro de Alcântara, j. 24/10/2012).
No mesmo sentido, em caso que se verificou a infidelidade pública e vexatória do ex-marido da parte autora com a sua cunhada, o Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a condenação imposta ao cônjuge infiel, no valor histórico de R$ 15.000,00 (quinze mil reais), reconhecendo “a presença do dever de indenizar, por aplicação dos artigos 186 e 927 do Código Civil vigente, vulnerada a incolumidade psíquica da autora, configurados, também, o nexo causal e a ilicitude do ato” (TJSP, Apelação nº 0005343-36.2012.8.26.0008, 6ª Câmara de Direito Privado, Des. Rel. Fortes Barbosa, j. 08/05/2014).
Em suma, pode-se concluir que embora a indenização em decorrência da infidelidade conjugal ainda seja alvo de controvérsias, resta evidente que o respeito aos deveres conjugais e convivenciais não estão ultrapassados no direito brasileiro, servindo o instituto da responsabilidade civil como importante ferramenta para a tutela jurídica dos danos que possam advir das violações aos referidos deveres.
Afinal, se por um lado não é possível que o Poder Judiciário penetre na seara da intimidade e dos sentimentos dos indivíduos, por outro, não há dúvidas de que deve zelar pelo cumprimento das normas jurídicas aplicáveis em todas as hipóteses, valendo-se dos remédios jurídicos disponíveis, como forma de pacificação social e reequilíbrio das relações jurídicas.
*Thais Lozada Moreira. Sócia de Regina Beatriz Tavares da Silva Sociedade de Advogados - RBTSSA.
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¹ TJRJ, Apelação nº 0010351-06.2014.8.19.0012, Quarta Câmara Cível, Des. Rel. Marco Antônio Ibrahim, j. 02/06/2021.
² A tese de Regina Beatriz Tavares da Silva, Reparação Civil na Separação e no Divórcio, foi publicada pela Editora Saraiva no ano de 1999. A jurisprudência atual é citada por Regina Beatriz Tavares da Silva no artigo Responsabilidade Civil nas Relações de Família, in https://periodicos.uni7.edu.br/index.php/revistajuridica/article/view/1222, acesso em 04/10/2021.
³ Carlos Roberto Gonçalves, Responsabilidade Civil, 7ª ed. São Paulo, Saraiva, 2002, p. 80/85; Mário Moacyr Porto. Responsabilidade Civil entre Marido e Mulher, in Responsabilidade Civil: Doutrina e jurisprudência, coord. Yussef Said Cahali, São Paulo, Saraiva, 1984, p. 203; Carlos Alberto Bittar, Reparação Civil por Danos Morais, 3ª ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1999, p. 189. Da titular e sócia fundadora de RBTSSA cite-se também a obra em coautoria com Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil: Direito de Família, volume 2, 43ª edição, São Paulo, Saraiva, 2016, p. 101/104 e 388/397 e o livro Divórcio e Separação, 2ª edição, São Paulo, Saraiva, 2012, p. 78.
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