Por Regina Beatriz Tavares da Silva*
1. Reconhecimento de uniões entre pessoas do mesmo sexo.
O ministro Dias Toffoli elimina a confusão acerca do tema de repercussão geral, afirmando que o tema do reconhecimento de uniões estáveis entre pessoas do mesmo gênero já foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da ADIn 4.722/DF e da ADPF 132/RJ, não tendo sido retomado seu debate, inclusive porque:
“… a única interpretação possível para o art. 1.723 do Código Civil, seja por sua aplicação analógica, seja por aplicação direta dos comandos constitucionais que iluminam a questão ‘é a que privilegia a não discriminação, a tolerância, a igualdade e a liberdade de opção sexual e a de perseguir um projeto de vida não vedado pelo ordenamento jurídico.'”.
Irrelevante, portanto, ao tema efetivamente em pauta o fato de as relações concubinárias serem “homoafetivas ou heteroafetivas”, ressalta o ministro.
2. União estável e casamento como entidade familiar: aproximação entre os institutos.
O ministro Dias Toffoli destaca a contribuição da Sociologia Jurídica na percepção do Direito:
“… de um lado, emana da sociedade, sendo ‘resultante do poder social que o apoia e o impõe’, como ‘reflexo dos objetivos, valores e necessidades sociais’; de outro lado ele influencia a sociedade como um instrumento de controle …”.
A Constituição Federal (art. 226, § 3º), em sua “função como instrumento regulatório da vida social”, teve por objetivo “facilitar o reconhecimento formal dessa união (transmutação em casamento)” (grifos originais).
E prossegue:
“… a união estável emana da sociedade e é reconhecida pelo direito; o casamento é fruto do poder indutor e diretivo do Estado, com finalidade de contribuir para a maior confiabilidade nas relações privadas familiares e, no mesmo passo, para a segurança jurídica dos atos praticados na formação, na constância e na dissolução da união.”.
Como é importante essa contribuição destacada pelo ministro Dias Toffoli para pôr fim ao argumento pífio de que a evolução ocorrida no reconhecimento das relações entre pessoas do mesmo gênero como entidades familiares poderia também ocorrer na atribuição de natureza familiar à mancebia. A sociedade não apoia o concubinato. O Direito não exerceria sua função de instrumento de organização social se reconhecesse a mancebia como relação familiar.
3. Equiparação dos efeitos entre os institutos realizada pelo STF e pela legislação
O ministro Dias Toffoli salienta os efeitos sucessórios da união estável, que foram equiparados pelo STF aos do casamento na ordem de vocação hereditária (RE 878.694/MG, rel. min. Luis Roberto Barroso, DJe 06/2/18), quando aponta a crescente atribuição de efeitos jurídicos similares a esses dois institutos.
Aqui, mencionemos também o RE 646.721/RS em que, por meio de embargos, foi esclarecido o alcance dessa equiparação, após as manifestações da Associação de Direito de Família e Sucessões (ADFAS). Por exemplo, o companheiro sobrevivente concorre com os filhos do falecido na herança, ou com os pais do de cujus.
Na interpretação conjunta dos artigos 1.521, VI e 1.723, § 1º do Código Civil, o ministro também demonstra que:
“… uma pessoa com união estável não poderá ter simultaneamente reconhecido pelo Estado outro vínculo familiar.”
Tal previsão “é uma decorrência da escolha feita, em nosso ordenamento jurídico, pela monogamia“.
Apresenta também esclarecimento sobre a expressão concubinato, que não mais deve ser chamado de puro e impuro, como no passado, especialmente desde a Constituição Federal de 1988, quando essa palavra só tem cabimento na relação que concorre com um casamento ou uma união estável. O que era chamado concubinato puro tem hoje a denominação de união estável. O que era concubinato impuro tem o mesmo significado do concubinato em nossos dias: “relação duradora com impedimento ao casamento”.
A Constituição Federal elevou a união estável a entidade familiar e o Código Civil precisou com clareza sua distinção do concubinato. O ministro frisa que a única exceção se faz quando houver separação de fato, nos termos do art. 1.723, § 1º do Código Civil:
“Em nenhum outro caso, contudo, admite-se a cumulação de vínculos entre as figuras do casamento e da união estável, sob pena de se caracterizar o concubinato.”
Ao concubinato somente podem ser atribuídos direitos se houver sociedade de fato, relação do Direito das Obrigações e não do Direito de Família, quando o concubino contribui com capital ou trabalho para a aquisição de patrimônio que fica em nome do outro. Para vedar o enriquecimento indevido na sociedade de fato, além da prova da contribuição, esta é mensurada para calcular o percentual devido ao sócio de fato.
4. A duração do concubinato não confere natureza familiar à mancebia
Bem afirma o ministro Dias Toffoli que:
“Assim, caracterizada esteja uma união estável, a outra relação – se demonstrada, ainda, sua não eventualidade – se caracteriza como concubinato.”
E efetivamente nada importa se a mancebia é de curta, média ou longa duração.
Sempre será concubinato, sempre importará em cumplicidade do adultério, sempre haverá ilicitude nessa relação.
Este é o pensamento do STF manifestado em Recursos Extraordinários anteriores, citando-se, a título de exemplo, o seguinte acórdão:
COMPANHEIRA E CONCUBINA – DISTINÇÃO. Sendo o Direito uma verdadeira ciência, impossível é confundir institutos, expressões e vocábulos, sob pena de prevalecer a babel. União estável – proteção do Estado. A proteção do Estado à união estável alcança apenas as situações legítimas e nestas não está incluído o concubinato… Percebe-se que houve um envolvimento forte, projetado no tempo – 37 anos -, dele surgindo prole numerosa – nove filhos -, mas que não surte efeitos jurídicos ante a ilegitimidade, ante o fato de haver sido mantido o casamento com quem Valdemar contraíra núpcias e tivera onze filhos. (…) No caso, vislumbrou-se união estável, quando, na verdade, verificado simples concubinato, conforme pedagogicamente previsto no artigo 1.727 do Código Civil. (…) O concubinato não se iguala à união estável referida no texto constitucional, no que esta acaba fazendo as vezes, em termos de consequências, do casamento. Tenho como infringido pela Corte de origem o § 3º do artigo 226 da Constituição Federal, razão pela qual conheço e provejo o recurso para restabelecer o entendimento sufragado pelo Juízo na sentença prolatada. (STF, RE 397.762/BA, 1ª turma, rel. min. Marco Aurélio, j. 3/6/08).
5. A nulidade de uma segunda união estável se a relação tivesse sido constituída com boa-fé
O ministro Dias Toffoli em análise efetivamente jurídica também aponta que a boa-fé de um companheiro numa união estável em concorrência com outra união estável pré-constituída ou com um casamento, não tem guarida no art. 1.561 do Código Civil, nem mesmo por simetria, pelas seguintes razões.
Recordemos que boa fé em casamento putativo é o desconhecimento ou ignorância de quem se casa com pessoa já casada.
Aquele dispositivo legal não dispensa a declaração de nulidade ou a anulação do segundo casamento, praticado em bigamia, sendo seus efeitos assegurados somente até a prolação da sentença anulatória.
Portanto, o Código Civil, no art. 1.561 não endossa dois casamentos concomitantes, muito ao contrário, confere nulidade ao segundo casamento.
Desse modo, o Código Civil não atribui, nem mesmo diante de boa fé na segunda união estável, validade a esta relação, bem ao contrário, considera-a nula, na aplicação analógica desse dispositivo.
6. Duplicidade relacional e indispensável confronto de provas sobre uma e outra relação para a identificação da união estável.
O ministro Dias Toffoli é também impecável ao observar que para que se chegue à conclusão sobre a relação que constitui união estável não basta examinar uma das relações, é necessário confrontar as provas de uma com as provas da outra, para a “obtenção da verdade real”.
Além disso, já que a relação heterossexual havia, no caso, sido reconhecida judicialmente, seria necessária a prévia anulação da respectiva sentença, para que fosse possível o reconhecimento da outra relação como entidade familiar.
7. Conclusão do voto
O ministro ratificou que, independentemente de a relação ser heteroafetiva ou homoafetiva, é “inviável o reconhecimento da concomitância de duas uniões estáveis (de dois casamentos, ou de um casamento e uma união estável).”, posição esta que foi defendida pela ADFAS, na qualidade de amicus curiae no RE em tela.
*Regina Beatriz Tavares da Silva é Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), Doutora pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), sócia fundadora e titular do escritório de advocacia Regina Beatriz Tavares da Silva Sociedade de Advogados.
Publicação original: Migalhas (16/12/2020)
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