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A IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DE RECONHECIMENTO DO POLIAMOR COMO UNIÃO ESTÁVEL

SENTENÇA QUE DESRESPEITA TESES VINCULANTES DO STF E ACÓRDÃO DO CNJ

Artigo de autoria de Regina Beatriz Tavares da Silva[1] com a colaboração de Emily Costa Diniz[2].

O artigo publicado no Blog do Fausto Macedo, no Estadão, é desenvolvido com maior detalhamento neste texto, trazendo ao leitor todos os fundamentos que levam à nulidade da sentença que atribuiu a um “trisal” a natureza de entidade familiar.

A repercussão na mídia dessa sentença, que atribuiu a uma relação de três pessoas a natureza de união estável, leva à convicção de que o que está errado chama mais atenção nos meios de comunicação do que o que está correto e conforme o ordenamento jurídico brasileiro.

Segundo as informações da mídia, o “trisal” surgiu da agregação de uma mulher de 32 anos ao casal formado por um homem de 45 anos e uma mulher de 51 anos. Foi também pleiteado por eles a concessão de licença/salário maternidade para a “mãe não-gestante”.

A sentença foi proferida na 2ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Novo Hamburgo do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, cita a canção “Tempos modernos”, de Lulu Santos, o que denota o “romantismo” do pronunciamento judicial (Processo nº 5015552-95.2023.8.21.0019).

Observa-se, na sentença, a influência da ideia da afetividade como princípio caracterizador, por si só, das entidades familiares, uma vez que, em diversos de seus trechos, menciona o referido “princípio” como fundamento para o reconhecimento da dita “união poliafetiva”. A título de exemplo:

Uma família que escapa aos modelos tradicionais, mas que nem por isso ficará à mercê da proteção do Estado, já que, permeada pela afetividade e felicidade entre seus membros, há cerca de 10 anos. O não reconhecimento da união poliamorosa como entidade familiar aqui, induvidosamente, caminharia na contramão da realização da felicidade dos requerentes, desconsiderando a afetividade que serve de amálgama ao relacionamento.

Não é o escopo deste artigo adentrar com maior profundidade nas incongruências que cercam a pretensão de utilização do afeto ou da afetividade como princípio basilar da família, mas, em breves palavras, e por razões óbvias, certo é que a afetividade, em seu viés subjetivo, como sentimento de afeto, não pode ser princípio de Direito.

Por outro lado, em sua dimensão objetiva, traduzida no que melhor se chama de socioafetividade das relações de filiação, ou seja, na verificação de atos de cuidado, no agir como se família fosse, na constatação da posse do estado de família, como bem esclarece Caio Morau[3], podem existir efeitos jurídicos. A socioafetividade, desde que permeada de requisitos construídos pela jurisprudência (leia-se: decisões uniformes dos Tribunais), dá origem à relação de parentesco entre pai ou mãe e filho socioafetivos, como sabemos.

Entretanto, como acertadamente entendido por doutrina abalizada[4], o que se tutela, nesses casos, não é o afeto, mas a autonomia da vontade em relações que têm em vista a proteção, especialmente, da criança e do adolescente, que é a pessoa vulnerável, criada como se fosse filho e que não pode ser havido como “algo descartável” no rompimento da relação entre sua mãe e quem o teve por anos como se fosse parte de sua prole consanguínea.

Até porque, nas palavras de Atalá Correia, “[…] não é evidente nem necessariamente correto que a afetividade no plano dos fatos deva ser reconhecida, no plano de direito, como formadora de laços jurídicos. E, se assim fosse, toda forma de afetividade traria consigo o fardo de uma obrigação jurídica.”[5].

Ou seja, nem toda relação em que há afeto deve ser abrigada pela tutela do Direito de Família, a exemplo do namoro, relação afetiva desprovida de qualquer efeito jurídico.

Apesar da aparente “beleza” em se defender o afeto como o alicerce jurídico das entidades familiares, isto não se mostra adequado juridicamente e tampouco protetivo às pessoas. Ainda que o afeto possa ser visto como um valor jurídico relevante, como uma “lente” segundo a qual os julgadores analisam as causas familiares, geralmente permeadas por esse fenômeno e dotadas de certa peculiaridade, ele não se mostra suficiente à caracterização da família em seu sentido jurídico.

A afetividade, portanto, não tem o condão de legitimar todo e qualquer tipo de relação. Como corolário do direito constitucional à liberdade, todos têm o direito de viver e relacionar-se da forma como desejarem, mas daí não decorre um automático dever do Estado em tutelar todas as relações como entidades familiares.

A Constituição Federal, em seu artigo 226, § 3º, refere-se à união estável como uma entidade familiar formada por duas pessoas: um homem e uma mulher.

No mesmo sentido, em 2011, no julgamento conjunto da ADPF 132 e da ADI 4277, em que se analisou a interpretação conforme a Constituição Federal do art. 1.723 do Código Civil (CC) para possibilitar o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo gênero, todos os votos enfatizaram que o reconhecimento jurídico dessas relações depende dos mesmos requisitos necessários à caracterização da união estável heterossexual, entre eles, a monogamia[6].

Em 2020 e 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF), de forma vinculante, consagrou a monogamia como princípio constitucional estruturante da união estável por meio de duas Teses de Repercussão Geral no Tema 526, RE 883.168, Relator Ministro Dias Toffoli e no Tema 529, RE 1.045.273, Relator Ministro Alexandre de Moraes.

Em ambos os processos se julgava (im)possibilidade de conceder direitos previdenciários a concubino/a ou, no linguajar cotidiano, a amantes. A ADFAS atuou como amicus curiae pela improcedência dos pedidos.

Entre os argumentos da ADFAS, foi destacada a equiparação da união estável ao casamento, inclusive em efeitos sucessórios, pela Suprema Corte (Tema 498 – RE 646.721 – e Tema 809 – RE 878.694), fixando a seguinte Tese em ambos: “É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002”. Portanto, não faria sentido o STF ter equiparado, em quase todos os efeitos, a união estável ao casamento nesta Tese e na análise dos outros dois Temas (526 e 529) considerar que poderia haver uniões estáveis simultâneas porque somente haveria esta impossibilidade diante de um casamento.

A união estável pode, inclusive ser convertida em casamento, conforme art. 226, § 3º, da CF, de modo que a institucionalização de duas uniões estáveis concomitantes equivaleria à permissão da bigamia, que é crime (Código Penal, art. 235).

Importante ressaltar que, no RE 1.045.273/SE (Tema 529), nada importava a homo ou heterossexualidade da relação adulterina. Julgava-se a concomitância de relações, sendo irrelevante, para tanto, se os casais eram formados por dois homens, duas mulheres ou um homem e uma mulher.

Estava em pauta se ao concubinato, chamado de “relação paralela”, poderiam ser atribuídos direitos previdenciários. Reconhecer a atribuição de benefícios previdenciários ao concubino, implicaria atribuir licitude à relação de adultério.

Os Temas de Repercussão Geral, embora se direcionassem a Recursos Extraordinários de matéria previdenciária, envolviam, antes, o conceito de Família, na medida em que se questionava o reconhecimento ou não de efeitos ao concubinato. Afinal, a base da concessão dos benefícios da seguridade social por morte reside na existência de uma entidade familiar, em forma de casamento ou de união estável, e no parentesco. Ninguém pode atribuir pensão por morte a um vizinho ou a um amigo necessitado, como sabemos. Somente diante do vínculo familiar, de parentesco ou de casamento e de união estável, pode ser concedida a pensão previdenciária por morte.

Se tivessem sido atribuídos benefícios previdenciários nos casos julgados pelo STF, que se transformaram em Teses de Repercussão Geral, primeiramente haveria a divisão entre o viúvo/a e o/a amante, com a possibilidade de exigência de um salário-mínimo por cada um deles, se esta fosse a pensão, dentro do princípio do mínimo necessário. Este, entre outros motivos do Direito Previdenciário, também devem ser ponderados, porque a matemática atuarial existe para dar segurança aos cálculos previdenciários e a toda a população que necessita desses benefícios. Tenha-se também a atenção para a infinitude numérica de pleitos, já que em poligamia não há limites de participantes.

A despeito da alegada despatrimonialização do Direito de Família por meio do afeto, sabe-se que as relações paralelas (adulterinas) e os trisais não deixam de ter consequências econômicas e financeiras, inclusive perante terceiros. Quanto aos trisais, além do INSS, outros poderiam ser atingidos, como planos de saúde, clubes desportivos ou outras associações, em que um membro da família paga e muitos outros poderiam se beneficiar, se fosse aceita a poligamia do poliamor como relação familiar.

Em suma, mostra-se inviável dissociar as demandas familiares de interesses econômicos e financeiros, ou patrimoniais, como observa Danilo Vieira Porfirio[7].

Não é diferente no caso da poligamia. Não se está diante tão somente de questões afetivas, mas, sim, de uma relação com inúmeras implicações materiais para terceiros e para o Direito, gerando imensa insegurança jurídica, conforme ressaltado pelo Ministro Gilmar Mendes no RE 1.045.273/SE, ao proferir seu voto no venerando acórdão.

Há quem diga que o poliamor do trisal não seria poligamia, o que é de pasmar. Vamos às definições de poligamia: “união conjugal com mais de um parceiro[8], “matrimônio de um com muitos ≠ monogamia[9], “forma de casamento em que uma pessoa tem vários cônjuges ao mesmo tempo[10], e, por fim:

Sistema em que um homem tem mais de uma esposa ao mesmo tempo, ou, menos comumente, a um sistema em que uma mulher tem mais de um marido concomitantemente. A palavra poligamia vem de duas palavras gregas, que significam muitos casamentos. Os cientistas usam o vocábulo poliginia para designar aquele que tem mais de uma esposa ao mesmo tempo, e poliandria, para designar a mulher que tem mais de um marido ao mesmo tempo[11].

O tal poliafeto, que, por sinal, não é comum no Brasil, de um homem com duas mulheres, é “poligamia”, mais especificamente “poliginia”.

Aliás, esses confusos argumentos que alguns buscam para justificar o poliamor são usados não por mera ignorância, mas, sim, para obnubilar os males do poliamor, que atingem principalmente as mulheres, que se tornam subordinadas ao homem, sem igualdade na relação, já que Ele assume o papel de “Todo Poderoso”[12].

Aqui, aliás, um paradoxo inaceitável: as mulheres lutaram durante anos para alcançar a igualdade com os homens e agora estariam sujeitas ao retrocesso da subordinação feminina ao “macho alfa”. Por favor, mulheres, despertem e rejeitem os falsos encantos do tal poliamor!

Seja “consentida” pelos partícipes (trisal), seja “não consentida” por algum deles (mancebia), tudo é poligamia! Nos trisais, todos os partícipes têm ciência e concordam com a multiplicidade de parceiros, na mancebia não há concordância do consorte traído, mas ambas as relações ferem o princípio constitucional da monogamia e não são tuteladas em nosso ordenamento jurídico. Portanto, não procede a distinção que foi realizada na sentença em tela:

A presente decisão não chancela, pois, a existência de união afetiva paralela ao casamento ou a outra união estável, o que é vedado no ordenamento jurídico. Não há aqui duas relações paralelas entre os envolvidos, muito menos sob o signo da clandestinidade. O que se reconhece aqui é uma única união amorosa entre três pessoas: um homem e duas mulheres, revestida de publicidade, continuidade, afetividade e com o objetivo de constituir uma família e de se buscar a felicidade (grifos nossos).

Há um evidente equívoco na afirmação de que o nosso ordenamento veda tão somente o concubinato, ou seja, a mancebia (poligamia não consentida por um dos partícipes), como se denota claramente na Constituição Federal e nas duas Teses de Repercussão Geral do STF, antes citadas. Poliamor é poligamia!

Há até mesmo equivocada menção na sentença ao Tema 529 do STF, quando é dito que se um dos partícipes se mantivesse civilmente casado não poderia ter sido atribuída a natureza de união estável a tal relação:

Oportuno sublinhar que, por ocasião da decisão que recebeu a inicial, esclareceu-se a respeito da vedação prevista em lei da coexistência entre casamento e união estável com a participação de uma mesma pessoa (inciso IV, do art. 1.521, e do §1º, do art. 1.723, ambos do Código Civil Brasileiro), com citação da tese 529 e em julgamento de Repercussão Geral pelo STF […] E os requerentes D. e L., casados entre si, em emenda à inicial, prontamente requereram a dissolução do casamento por meio de divórcio, obviamente projetando o reconhecimento da entidade familiar poliamorosa formada com K..

A Tese firmada no Tema 529 foi mencionada como se a vedação recaísse tão somente à concomitância do casamento com a união estável, enquanto a Tese, na verdade, firma a monogamia como princípio da união estável! Leia-se:

A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1.723, § 1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro (Tema 529, RE 1045273, Relator Min. Alexandre de Moraes – grifos nossos).

E conheça-se o processo e o tema que deu origem à primeira Tese vinculante do STF: tratava-se de um homem que queria a atribuição de direitos em concorrência com viúva de uma relação que ela manteve em união estável com o falecido, alegando ter mantido com ele relação de afeto. Ora, basta ler, sem arriscar às escuras e de maneira obnubilada, para concluir que seja a pessoa casada ou não, o poliamor não é relação de família segundo a CF e o STF! No outro Tema de repercussão geral no STF, de n. 526, a Suprema Corte, ao firmar a segunda Tese vinculante volta a repetir que seja união estável, seja casamento, a relação é sempre monogâmica:

É incompatível com a Constituição Federal o reconhecimento de direitos previdenciários (pensão por morte) à pessoa que manteve, durante longo período e com aparência familiar, união com outra casada, porquanto o concubinato não se equipara, para fins de proteção estatal, às uniões afetivas resultantes do casamento e da união estável (Tema 526, RE 883168, Relator Min. Dias Toffoli – grifos nossos).

A sentença cita, também, o julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277, para ressaltar o direito à busca pela felicidade e o reconhecimento de uniões homoafetivas, sem considerar, contudo, a ênfase à monogamia que todos os votos deram no julgamento dessas ações pelo STF. Vide o item 6 da ementa do acórdão:

6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de “interpretação conforme à Constituição”. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva. (grifo nosso)

Feitas essas considerações para o devido entendimento deste texto, a sentença em tela desrespeita a decisão do CNJ no Pedido de Providências nº 00459-08.26.2.00.0000, que julgou procedente o pedido da ADFAS para a vedação à lavratura de escrituras de poliamor como uniões estáveis. V. trecho da sentença:

Não desconheço posicionamento do colendo Conselho Nacional de Justiça ao julgar Pedido de Providências, ocasião em que se deliberou, por maioria, pela proibição aos serviços notariais da lavratura de escrituras públicas declaratórias de uniões poliafetivas. […] Respeito os fundamentos dos votos vencedores. No entanto, compreendo a matéria em debate na linha do voto divergente proferido pelo Conselheiro Luciano Frota.

A decisão do CNJ que deveria ter sido considerada na sentença obviamente é a do órgão Colegiado, de relatoria do Ministro João Otávio de Noronha, em que apenas um voto foi divergente. A decisão em acórdão do CNJ é muito clara e inquestionável, valendo mencionar os seguintes trechos:

EMENTA: PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS. UNIÃO ESTÁVEL POLIAFETIVA. ENTIDADE FAMILIAR. RECONHECIMENTO. IMPOSSIBILIDADE. FAMÍLIA. CATEGORIA SOCIOCULTURAL. IMATURIDADE SOCIAL DA UNIÃO POLIAFETIVA COMO FAMÍLIA. DECLARAÇÃO DE VONTADE. INAPTIDÃO PARA CRIAR ENTE SOCIAL. MONOGAMIA. ELEMENTO ESTRUTURAL DA SOCIEDADE. ESCRITURA PÚBLICA DECLARATÓRIA DE UNIÃO POLIAFETIVA. LAVRATURA. VEDAÇÃO. […]

9. […] a) as regras que regulam relacionamentos monogâmicos não são hábeis a regular a vida amorosa “poliafetiva”, que é mais complexa e sujeita a conflitos em razão da maior quantidade de vínculos; e b) existem consequências jurídicas que envolvem terceiros alheios à convivência, transcendendo o subjetivismo amoroso e a vontade dos envolvidos.

10. A escritura pública declaratória é o instrumento pelo qual o tabelião dá contorno jurídico à manifestação da vontade do declarante, cujo conteúdo deve ser lícito, uma vez que situações contrárias à lei não podem ser objeto desse ato notarial. (grifos nossos).

Portanto, há desrespeito ao que está decidido pelo Conselho Nacional de Justiça na sentença em tela, além da violação às duas Teses de Repercussão Geral do STF e à Constituição Federal.

Além das dificuldades de regulamentação apontadas pelo CNJ, em razão da complexidade do relacionamento poligâmico, há, reitere-se, outras consequências desta prática, como a maior desigualdade entre homens e mulheres, tendo em vista que, mais comum é a prática da poliginia do que da poliandria, o que implica em maiores índices de violência doméstica e maiores taxas de crimes, inclusive de tráfico sexual[13].

Observa-se, também, nos países em que a prática é permitida, a menor produtividade econômica e os menores índices de desenvolvimento humano.

A conclusão a que chegou o estudo publicado na Royal Society, de autoria de Joseph Henrich, Robert Boyd e Peter J. Richerson, é de que as sociedades monogâmicas mostraram-se, historicamente, mais aptas e por isso prevaleceram. O relacionamento monogâmico, segundo o estudo, gera melhor organização social e, por consequência, mais benefícios econômicos[14].

A monogamia é o sistema adotado em todos os países ocidentais e também na maior parte da Ásia, ou seja, na maior parte do mundo, coincidindo, ainda, com as áreas de melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) – América do Sul, América Central e América do Norte, Europa, Oceania e maior parte da Ásia, conforme dados de IDH de 2021/2022 fornecidos pela United Nations Development Programme.

A poligamia, por sua vez, é legalmente permitida nos locais de menor IDH – menor parte da Ásia e maior parte da África. Aqui um dado importante: em Angola, a Constituição de 2010 adotou a monogamia nas relações conjugais (art. 35, 1)[15], e o fez para atender os costumes locais, monogâmicos, sendo a poligamia adotada somente por quem não sabe ler e escrever, ou seja, pelas pessoas que são analfabetas, como acentuou Pedro Fançony no artigo intitulado “União de facto em Angola” e publicado no Tratado da União de Fato[16].

Demonstra-se, assim, que é desprovido de veracidade o discurso adotado na defesa do poliamor de que há evolução ou avanço nesse tipo de relação, mediante os dados científicos das análises sociais, econômicas e psicológicas.

Com relação à multiparentalidade, a sentença defere o pedido para determinar o registro do nascituro em nome do pai e das duas mães. Em sua fundamentação, afirma os benefícios que isto trará à criança gerada, sem, todavia, colacionar estudos que efetivamente comprovem os impactos de um ser humano ser criado dentro de uma relação poligâmica.

Aliás, aí uma vez mais a violação ao decidido e normatizado pelo CNJ, já que, pelo Provimento 83/2019, consolidado no Provimento 149/2023, ficou claro que a possibilidade de registro de duas mães se dá somente em relações entre duas pessoas do mesmo gênero, duas mulheres que vivem uma união estável, com provas exigidas pela norma da existência de relação social – reconhecimento da sociedade da qualidade de mães – além da relação afetiva, norma que é destinada somente para menores com mais de 12 anos:

Art. 10-A. A paternidade ou a maternidade socioafetiva deve ser estável e deve estar exteriorizada socialmente. § 1º O registrador deverá atestar a existência do vínculo afetivo da paternidade ou maternidade socioafetiva mediante apuração objetiva por intermédio da verificação de elementos concretos. § 2º O requerente demonstrará a afetividade por todos os meios em direito admitidos, bem como por documentos, tais como: apontamento escolar como responsável ou representante do aluno; inscrição do pretenso filho em plano de saúde ou em órgão de previdência; registro oficial de que residem na mesma unidade domiciliar; vínculo de conjugalidade – casamento ou união estável – com o ascendente biológico; inscrição como dependente do requerente em entidades associativas; fotografias em celebrações relevantes; declaração de testemunhas com firma reconhecida.” (atual artigo 506, § 1º e 2º, do Provimento 149/2023, que compilou os provimentos do CNJ sobre serviços registrais e notariais).

Art. 10. O reconhecimento voluntário da paternidade ou da maternidade socioafetiva de pessoas acima de 12 anos será autorizado perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais.” (atual artigo 505 do Provimento 149/2023).

Sobre as decisões judiciais encontradas a respeito da autorização de registro de duas mães na certidão de nascimento de uma criança, ou seja, de menor com menos do que 12 anos de idade, vê-se que é preciso, antes, provar a socioafetividade, o que, obviamente, não se pode antever antes do nascimento de uma criança, como ocorreu na sentença em análise. Entre outros acórdãos, no mesmo sentido, são citados os seguintes:

AÇÃO DECLARATÓRIA DE DUPLA MATERNIDADE – Procedência – Insurgência do Ministério Público – Cabimento – Autoras que pretendem a declaração de dupla maternidade do filho que está sendo gerado pela coautora F.E. – Provimento nº 63/2017, do CNJ, que dispõe sobre o registro de nascimento dos filhos gerados por reprodução assistida, sem disciplina legal para a hipótese de “inseminação caseira” – Ainda que seja possível o reconhecimento da maternidade socioafetiva da coautora S. em relação ao/à filho/a que está sendo gerado/a por F.E., é necessário considerar que se trata de um nascituro, desprovido de personalidade civil, e que apenas os interesses das autoras está sendo trazido a debate – Direito de reconhecimento à ancestralidade que deve ser preservado (CC, art. 2º, parte final) – Improcedência da ação que é medida de rigor – RECURSO PROVIDO. (TJSP, AC 1001350-16.2022.8.26.0008, Rel. Miguel Brandi, 7ª Câm. de Dir. Priv., j.: 30/06/2022).

Ação de reconhecimento de maternidade – Ação de procedência – Insurgência do Ministério Público em recurso de apelação – União homoafetiva – Criança concebida através de inseminação artificial heteróloga “caseira” – Demonstração da doação de material genético por terceiro, que declarou a ausência de vínculo afetivo com as autoras e com a criança – Comprovação da parentalidade socio afetiva que possibilita a declaração de maternidade – Sentença mantida – Recurso não provido. Nega-se provimento ao recurso. (TJSP, AC 1055550-93.2019.8.26.0002, Rel. Marcia Dalla Déa Barone, 4ª Câmara de Direito Privado, j. 21/01/2022).

APELAÇÃO CÍVEL – DIREITO DE FAMÍLIA – DUPLA MATERNIDADE AFETIVA – CASAL HOMOAFETIVO – UNIÃO ESTÁVEL CONFIGURADA – CONCEITO EXPANDIDO DE FAMÍLIA – ADI 4.277 – REPRODUÇÃO ASSISTIDA CASEIRA – PROVIMENTO N. 63/2017 DO CNJ – EXIGÊNCIA DE DECLARAÇÃO DE CLÍNICA – VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA – REQUISITOS PARA A FILIAÇÃO SOCIOAFETIVACONFIGURADOS – MELHOR INTERESSE DO MENOR […] (TJMG, AC 10000211059365001, Rel. Versiani Penna, j. 30/09/2021, 19ª Câmara Cível).

APELAÇÕES – Destituição do poder familiar e adoção – […] concessão da guarda de M. a Rafaelle e reconhecimento de Rafaelle como mãe socioeducativa de M., de 08 anos atualmente […]. Possibilidade de estabelecimento de dupla maternidade reconhecida pelas Cortes Superiores – Posse do estado de filho pontuada pelo mútuo afeto e reconhecimento social […] – Deslinde que melhor se amolda às premissas dos superiores interesses e prioridade absoluta do ECA – Manifestação da infante em estudo técnico, ademais, que deve ser prestigiada para o deslinde da causa […]. (TJSP, AC 1000460-41.2020.8.26.0269, Rel. Renato Genzani Filho, Câmara Especial, j. 20/01/2021).

Necessário reiterar, sempre, que não é o amor que o Direito protege, pois nem toda relação amorosa deve ter a guarida do Estado.

Nas palavras de Otavio Luiz Rodrigues Junior:

[…] O “amor”, e é bom que se volte a ele, definitivamente, não é jurídico. Sua juridicização pode até ocorrer, o que realmente se deu em casos excepcionais na legislação nacional e estrangeira. […] as fronteiras do amor e do Direito devem ser mantidas, ainda que exceções sirvam apenas para confirmar a diferença de planos. O “amor” não pode ser o novo “deus” laico. (grifo nosso)[17].

A Jurisprudência do STF e do STJ é uniforme com relação à natureza monogâmica das relações, que geram efeitos de cunho pessoal e patrimonial perante órgãos públicos, como o INSS, e empresas privadas, tanto na dissolução em vida, quanto post mortem, o que fica ainda mais preocupante na medida em que o número de participantes é infinito, 3, 4, 5 ou 10 participes do poliamor, tanto faz!

E não é só! Como realizar a partilha de bens se um dos membros do trisal se separa dos demais participes? Divisão tripartite? Nada, nada “trilegal”!

O afeto impacta o direito somente em relações em que exista o status de família, o que não é o caso das relações poligâmicas, que estão, inclusive, no plano da inexistência na escada Ponteana, vez que não possuem suporte fático suficiente para que a norma jurídica tenha incidência[18].

Observa-se, então, que qualquer sentença que se profira ou escritura pública que se lavre reconhecendo este tipo de relação como entidade familiar já nasce eivada de nulidade! Violação à Constituição Federal, às Teses vinculantes do STF e à decisão colegiada do CNJ!

Sentença, na íntegra, proferida no processo nº 5015552-95.2023.8.21.0019/RS:


Referências

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FANÇONY, Pedro Ambrósio dos Reis. União de facto em Angola. In: Tratado da União de Fato. Regina Beatriz Tavares da Silva, Atalá Correia e Alicia Garcia de Solavagione (Coords.). São Paulo: Almedina, 2021.


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HENRICH, Joseph, BOYD, Robert; RICHERSON, Peter. The puzzle of monogamous marriage. Disponível em: https://royalsocietypublishing.org/doi/10.1098/rstb.2011.0290 Acesso em 14/09/2023.


MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 2. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.


MORAU, Caio Chaves. O princípio da afetividade como fundamento das uniões no direito brasileiro. 2023. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2023.

1

RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Amor e Direito Civil: Normatividade, Direito e Amor. In: Família e Pessoa: uma questão de princípios. Coord. Regina Beatriz Tavares da Silva; Ursula Cristina Basset et al. – São Paulo: YK, 2018. p. 542-568.


TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. A frouxidão dos requisitos da união estável e a equiparação de seus efeitos aos do casamento no direito brasileiro. In: Tratado da União de Fato. Regina Beatriz Tavares da Silva, Atalá Correia, Alicia García de Solavagione (Coords.). São Paulo: Almedina, 2021.


TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. A poligamia e a desigualdade entre homens e mulheres. Disponível em: https://adfas.org.br/a-poligamia-e-a-desigualdade-entre-homens-e-mulheres/. Acesso em 14/09/2023.


VIEIRA, Danilo Porfírio de Castro. Definição e natureza jurídica do princípio da afetividade. In: Revista de Direito de Família e das Sucessões – RDFAS. v. 3/2015. p. 39-55.


[1] Pós-Doutora em Direito da Bioética pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – FDUL. Doutora em Direito e Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Fundadora e Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões – ADFAS. Diretora de Relações Institucionais da União dos Juristas Católicos de São Paulo – UJUCASP. Coordenadora e Palestrante em vários Cursos, Congressos e Jornadas realizados no Brasil e em outros países. Titular da Cadeira n. 39 da Academia Paulista de Letras Jurídicas – APLJ. Membro da Associação dos Advogados de São Paulo – AASP, do Conselho Superior de Direito da FECOMERCIO SP e do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais – CEBEPEJ. Foi membro da Comissão Especial de Assessoria à Relatoria Geral do Projeto do atual Código Civil, na Câmara dos Deputados. Participou de outros projetos legislativos, como o Projeto de Lei do Código de Processo Civil. Sócia fundadora e titular de Regina Beatriz Tavares da Silva Sociedade de Advogados.

[2] Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP) e Associada da ADFAS.

[3] Nesse sentido: MORAU, Caio Chaves. O princípio da afetividade como fundamento das uniões no direito brasileiro. 2023. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2023.

[4] Vide: CORREIA, Atalá. Insuficiência da afetividade como critério de determinação da paternidade. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 14. ano 5. p. 335-366. São Paulo: Ed. RT, jan.-mar. 2018; VIEIRA, Danilo Porfírio de Castro. Definição e natureza jurídica do princípio da afetividade. In: Revista de Direito de Família e das Sucessões – RDFAS. v. 3/2015. p. 39-55.

[5] CORREIA, Atalá. Filosofia, afetividade e direito. In: Família e Pessoa: uma questão de princípios. Coord. Regina Beatriz Tavares da Silva; Ursula Cristina Basset et al. – São Paulo: YK, 2018. p. 166 -183.

[6] TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. A frouxidão dos requisitos da união estável e a equiparação de seus efeitos aos do casamento no direito brasileiro. In: Tratado da União de Fato. Regina Beatriz Tavares da Silva, Atalá Correia, Alicia García de Solavagione (Coordenadores). São Paulo: Almedina, 2021.

[7] VIEIRA, Danilo Porfírio de Castro. Ob. cit.

[8] In: Cambridge Dictionary. Disponível em: https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/portugues-ingles/poligamia . Acesso em 15/09/2023.

[9] In: Dicionário Estraviz. Disponível em: https://estraviz.org/poligamia. Acesso em 15/09/2023.

[10] In: Dicionário Michaelis. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=poligamia . Acesso em 15/09/2023.

[11] In: Dicio, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2023. Disponível em: https://www.dicio.com.br/poligamia/ . Acesso em 15/09/2023.

[12]TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. A poligamia e a desigualdade entre homens e mulheres. Disponível em: https://adfas.org.br/a-poligamia-e-a-desigualdade-entre-homens-e-mulheres/. Acesso em 14/09/2023.

[13] FIGUEIREDO, Márcia Boen Garcia Liñan. Princípio da Monogamia-Direito constitucional, Direito de Família, Psicanálise e História. Disponível em https://adfas.org.br/principio-da-monogamia-direito-constitucional-direito-de-familia-psicanalise-e-historia/. Acesso em 14/09/2023.

[14] HENRICH, Joseph, BOYD, Robert; RICHERSON, Peter. The puzzle of monogamous marriage. Disponível em: https://royalsocietypublishing.org/doi/10.1098/rstb.2011.0290 Acesso em 14/09/2023.

[15] “Art. 35, 1. A família é o núcleo fundamental da organização da sociedade e é objecto de especial protecção do Estado, quer se funde em casamento, quer em união de facto, entre homem e mulher.”.

[16] FANÇONY, Pedro Ambrósio dos Reis. União de facto em Angola. In: Tratado da União de Fato. Regina Beatriz Tavares da Silva, Atalá Correia e Alicia Garcia de Solavagione (Coords.). 1 ed. São Paulo: Almedina, 2021.

[17] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Amor e Direito Civil: Normatividade, Direito e Amor. In: Família e Pessoa: uma questão de princípios. Coord. Regina Beatriz Tavares da Silva; Ursula Cristina Basset et al. – São Paulo: YK, 2018. p. 542-568.

[18] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 2. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

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