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Considerações sobre as medidas de acolhimento de crianças e adolescentes durante a COVID-19

Por Marina Dias Simonetti*, Noemi Correa** e Regina Beatriz Tavares da Silva***


O Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Nacional do Ministério Público, o Ministério da Cidadania e o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, por seus respectivos Presidentes e Ministros, emitiram a Recomendação Conjunta nº 1 de 16 de abril de 2020, que trata das medidas protetivas de acolhimento aplicadas às crianças e adolescentes durante a pandemia do coronavírus.


Não se pode dizer que a Recomendação Conjunta trouxe diretrizes totalmente inovadoras no combate ao Covid-19 envolvendo menores inseridos em programas de acolhimento institucional ou familiar. Trata, em sua maioria, de reiterar disposições já previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, notadamente no que se refere à excepcionalidade das medidas de acolhimento, como é o caso do artigo 1º, incisos I a IV e XI.


Contudo, o princípio da excepcionalidade das medidas de acolhimento, introduzido no ordenamento pela de Lei 12.010/2009, não está integralmente enraizado nos operadores da área da infância e juventude (Técnicos da Assistência Social, Conselheiros Tutelares, Técnicos do Poder Judiciário, Juízes e Promotores de Justiça). Muitos ainda acham que o acolhimento institucional da criança e do adolescente é a melhor solução. Daí o motivo pelo qual a Recomendação Conjunta reforçou a excepcionalidade da medida, mesmo que isto não tenha relação direta com o combate ao coronavírus, o que é muito importante.


Em outras palavras, a regra é que o Estado promova a família natural e que a colocação de crianças e adolescentes em abrigos ou famílias de acolhimento ocorra apenas diante da absoluta impossibilidade de permanência do menor na família natural ou extensa. Isto independentemente da pandemia.


O inciso I do artigo 1º sugere que, durante a pandemia, o competente magistrado determine, como prioridade, o afastamento do agressor do lar familiar em casos de maus tratos, opressão ou abuso sexual, estabelecendo como medida secundária a colocação do menor agredido em instituição ou família de acolhimento. Esta é uma medida justa, tendo em vista que, como regra geral, salvo exceções, o adulto agressor é quem deve sofrer o afastamento do conforto do lar, e não o menor que é vitimado pela violência doméstica.


Observe-se que o afastamento do agressor nas situações de abuso, moral ou físico, não deve ser aplicado somente em tempos de pandemia. Independentemente de emergências de saúde pública, a retirada da criança ou do adolescente da residência familiar deveria ocorrer em última hipótese, apenas na impossibilidade de afastamento do agressor, averiguada conforme as particularidades de cada caso. Deve-se ter em vista o interesse superior do menor sobre os demais, adotando-se a alternativa que melhor observe o bem-estar da criança e do adolescente. Em regra, a solução mais adequada é a manutenção do menor no lar, com o consequente afastamento do agressor.


O inciso II do art. 1º propõe a priorização de procedimentos para a concessão de guarda provisória para adotantes habilitados em relação a crianças e adolescentes que já se encontrem em estágio de convivência para adoção, ponto em que não se vislumbra novidade excepcional relacionada com o combate ao coronavírus.


O inciso III do art. 1º, relativo aos casos em que a genitora manifesta interesse de entregar o recém-nascido para adoção, replica o disposto no artigo 19-A, § 6º do ECA, que já prevê a colocação da criança nestas circunstâncias sob a guarda provisória de quem esteja habilitado a adotá-la.


De seu turno, o inciso IV recomenda a reintegração familiar dos menores na família biológica ou adotiva, com a excepcionalidade de sua manutenção em instituições de acolhimento, quando observadas condições seguras para o retorno à família de origem.


Inexistem dúvidas acerca da importância da reintegração da criança e do adolescente ao núcleo familiar, e é por este motivo que o próprio ECA, no artigo 19, § 3º prevê que a reintegração tem preferência sobre qualquer outra providência, inserindo-se o menor, nestes casos, em serviços e programas de proteção, apoio e promoção.



Ademais, o § 1º do mesmo artigo do ECA dispõe que a criança e o adolescente inseridos em programa de acolhimento institucional ou familiar terão o caso reavaliado a cada 3 (três) meses, oportunidade em que o juiz decidirá, baseado em relatório elaborado por equipe multidisciplinar, se é o caso de reintegração à família de origem.


Para completar, o inciso IX da Recomendação Conjunta dispõe que novos acolhimentos durante a pandemia serão admitidos apenas em casos excepcionais, encaminhando-se os acolhidos para instalações adequadas para permanência durante a pandemia.


Conforme mencionado nos parágrafos precedentes, as medidas de acolhimento, seja institucional, seja familiar, são excepcionais e aplicadas de forma transitória até que seja possível a reintegração familiar ou colocação do menor em família substituta, no caso de impossibilidade da primeira medida. Há, inclusive, previsão expressa no ECA nesse sentido (art. 101, § 1º).


Infelizmente, em inúmeros casos, quando identificadas irregularidades na família natural que demandam a intervenção da Rede de Proteção, adota-se desde logo o acolhimento do menor em vez da inserção da família de origem em programas de acompanhamento e orientação. Esta lamentável realidade é provavelmente o motivo pelo qual a Recomendação Conjunta tanto se preocupou em reforçar a excepcionalidade do acolhimento de crianças e adolescentes no documento em tela.


Os demais incisos do artigo 1º da Resolução Conjunta – V a VIII – trouxeram disposições de caráter excepcional relacionadas à pandemia do Covid-19.


O alto grau de transmissibilidade do Covid-19 exige ações de afastamento ou confinamento a fim de impedir o contágio em massa pelo vírus. Tanto é assim que praticamente todos os setores da sociedade civil vêm tomando as devidas precauções no exercício de suas atividades cotidianas.


O âmbito jurídico, inclusive, foi palco de diversas adaptações para possibilitar a prestação jurisdicional e a continuidade do acesso ao Poder Judiciário para a solução de conflitos.


E não pode ser diverso o tratamento conferido às crianças e aos adolescentes em situação de acolhimento. É interesse e dever do Estado proporcionar condições satisfatórias de saúde e segurança aos menores, principalmente aos que se encontram em programa de acolhimento institucional ou familiar.


As propostas dos incisos V a VIII do artigo 1º podem ser de difícil concretização, pelas razões a seguir expostas.


O inciso V do art. 1º tem a finalidade de diminuir a circulação de profissionais em referidas instituições, sugerindo a adoção de regime emergencial de funcionamento com cuidadores residentes no local, evitando-se o alto fluxo de entrada e saída de pessoas. Na prática, é preciso avaliar as questões trabalhistas e familiares dos cuidadores. Trabalhistas porque implica na alteração do regime de trabalho, em pagamento de horas extras, com todos os seus reflexos. É sabido que a maioria dos Serviços de Acolhimento Institucionais de Crianças e Adolescentes – SAICAs são mantidos por Organizações da Sociedade Civil, que têm um fluxo de caixa muito reduzido e em consequência dificuldades para arcar com o aumento dos custos financeiros que esta solução acarreta. Quanto à questão familiar, não há como se exigir que o cuidador abandone a família para se dedicar exclusivamente ao trabalho. Este tema é bastante complexo e foi tratado simplificadamente pela Recomendação Conjunta. A recomendação de práticas e cuidados conhecidos, como a utilização de máscaras, troca de roupas e banhos ao ingressar no local de trabalho e, claro, distanciamento social na medida do possível, sempre é relevante e de fácil execução.


O inciso VI do art. 1º propõe a restruturação do espaço físico do abrigo para possibilitar atendimento por profissionais para grupos de até 10 (dez) crianças e/ou adolescentes. Sabe-se que, diante das reais condições de muitas das instituições de acolhimento, a medida de restruturação não é factível. Isto porque, para ser efetiva, cada grupo de 10 crianças ou adolescentes precisaria permanecer totalmente isolado dos demais grupos. Isto implicaria na necessidade de nova divisão de quartos, refeitórios, espaços comuns etc., tudo higienizado e separado a fim de impossibilitar o contato entre os grupos. Dificilmente as condições das instituições – financeiras, espaciais e logísticas – permitirão a restruturação do espaço físico de maneira rápida e efetiva. No entanto, práticas de isolamento estão em consonância com as diretrizes da Organização Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde, e serão bem-vindas quando possível a sua implementação.


Por fim, as recomendações previstas nos incisos VII e VIII do art. 1º são de caráter incomum. A medida constante do inciso VII dispõe sobre a necessidade de “sensibilização” das famílias acolhedoras habilitadas para o acolhimento de mais de uma criança e/ou adolescente, bem como da Administração Pública para que complemente proporcionalmente o subsídio dado aos acolhedores.


O inciso VIII do art. 1º recomenda, na impossibilidade de manutenção do menor em instituição acolhedora, a permanência da criança ou do adolescente na residência de cuidadores diretos, demais profissionais do serviço do acolhimento ou de padrinhos afetivos, após decisão judicial autorizando tal medida. A manutenção do menor em instituição de acolhimento, evidentemente de forma excepcional, é de responsabilidade do Estado. O ônus da impossibilidade de permanência da criança e/ou do adolescente na instituição de acolhimento em razão do coronavírus somente pode ser transferido aos funcionários do serviço de acolhimento, diante de sua concordância consciente e expressa, além de verificações prévias.


O Estado deve, antes de determinar o acolhimento do menor por qualquer indivíduo, certificar-se de que o acolhedor tem as condições necessárias, incluindo a infraestrutura necessária para receber o menor. Devem ser consideradas não só questões de estrutura física do imóvel, mas também a quantidade de pessoas que reside no local, a existência de moradores no grupo de risco e de acomodações adequadas para o acolhido.


Outra questão de difícil monitoramento é o tratamento dispensado à criança ou ao adolescente pelos familiares do cuidador. Por este e outros motivos é que um processo criterioso deve preceder a habilitação das famílias, com a realização de estudos e entrevistas para que se certifique que a criança e/ou o adolescente serão satisfatoriamente acolhidos e que sua segurança e integridade física e mental serão preservadas por todos os integrantes do lar transitório. E daí mais um dilema da pandemia, como realizar esse processo durante estes difíceis tempos?


Não é porque se trata de cuidador da instituição, demais profissionais da rede de acolhimento ou de padrinho afetivo que se pode afrouxar os critérios de habilitação das famílias acolhedoras. Neste sentido, o artigo 34, § 3º do ECA prevê que os acolhedores serão devidamente selecionados, capacitados e acompanhados. O Estado deve permanentemente preocupar-se em certificar-se de que o menor está de fato em uma família que possui condições adequadas para acolhê-lo.


O mesmo raciocínio se aplica ao inciso VII do art. 1º. Menciona a necessidade de “sensibilização” da família acolhedora para acolher mais de uma criança ou adolescente. Mas, deve-se ter em vista que há famílias acolhedoras habilitadas que podem ser aptas a receber somente uma criança e/ou adolescente por vez, e não mais do que isto, a depender do caso concreto.


Data vênia, não há que se falar em “sensibilização” da Administração Pública para pagamento complementar de subsídio a estas famílias. Isto depende de procedimentos formais, com observância das normas legais, principalmente em vista do princípio da solenidade dos atos da Administração Pública.


Além disso, a questão financeira da família é apenas um dos critérios avaliados para a habilitação. O recebimento de subsídio complementar do Estado não significa que a família está automaticamente apta a acolher mais de uma criança e/ou adolescente. Devem ser considerados todos os critérios mencionados nos parágrafos precedentes.


Portanto, de forma geral, a Resolução Conjunta merece elogios pela iniciativa, mas, também, maiores aprofundamentos, compreendendo-se que não os fez em razão do exíguo prazo com que teve de editá-la, tendo em vista que todos estávamos despreparados para esta pandemia.


Sugere-se o enfoque em ações específicas e efetivas no combate ao coronavírus no âmbito das instituições e famílias de acolhimento. Além disso, medidas excepcionais, como sói acontecer, por vezes encontram obstáculos práticos e trabalhistas ou podem impactar negativamente na proteção e garantia dos direitos da criança e do adolescente, o que levou à elaboração deste artigo, que não pretende ser crítico, mas, sim, contributivo, em razão das áreas de atuação de cada uma de suas autoras.

*Marina Dias Simonetti. Associada de Regina Beatriz Tavares da Silva Sociedade de Advogados.

**Noemi Correa. Promotora da Infância e Juventude do Estado de São Paulo.

***Regina Beatriz Tavares da Silva. Sócia fundadora de Regina Beatriz Tavares da Silva Sociedade de Advogados.

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