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O STF reage à ideia de que o afeto possa gerar direitos desmedidos

Regina Beatriz Tavares da Silva*


O Supremo Tribunal Federal começa a reagir à ideia de que o afeto possa dar todos os direitos, ao pensamento de que um sentimento possa estar acima de valores consolidados no ordenamento jurídico, em que se destaca a chamada segurança jurídica, à tese de que todas as relações afetivas possam gerar efeitos patrimoniais, ou seja, reage ao afeto com direitos desmedidos.


No julgamento do Recurso Extraordinário de repercussão geral em que se debate a equiparação ou não dos efeitos sucessórios da união estável aos do casamento (RE 878.694-MG), ocorreu uma reviravolta após o voto do Ministro Dias Toffoli, que havia pedido vista desse processo em 31/08/2016, quando ocorreu a primeira parte do julgamento.


Em voto muito bem fundamentado, o Ministro Toffoli foi favorável à não equiparação.


Explica-se.


Nesse recurso, que se baseia num caso em que uma companheira numa união estável pleiteia ser a única herdeira do falecido, de modo que os irmãos do falecido sejam afastados da herança, o Ministro Luis Roberto Barroso, como Relator, elaborou o tema de repercussão geral abrangendo outras sucessões, como aquela em que o falecido deixa filhos que serão seus herdeiros, além de votar pela equiparação da união estável ao casamento.


É obvia a diferença entre o caso tratado naquele recurso que versa sobre a concorrência entre companheira sobrevivente e irmãos do falecido (art. 1790, III do Código Civil), e outros casos em que a concorrência se estabelece entre a companheira sobrevivente e os filhos do falecido (art. 1.790, incisos I e II). Aí, portanto, começam as falhas, porque esse recurso não pode analisar todos os incisos da norma do art. 1790, já que não pode fazer a análise dessa norma, em face da Constituição Federal, em abstrato, por não ser uma ação direta de inconstitucionalidade (CF, art. 102, I, “a”); é um Recurso Extraordinário em que a norma deve ser analisada se é ou não inconstitucional conforme o caso concreto (CF, art. 102, parágrafo terceiro), limitada, assim, às sucessões em que o falecido não deixa filhos, nem pais, mas somente irmãos.


O Ministro Toffoli, acolhendo as razões da ADFAS – Associação de Direito de Família e das Sucessões -, que figura como amicus curiae nesse processo, apontou logo no início de seu voto essa limitação à sucessão de alguém que deixa companheira e irmãos, que deveria ter sido feita na elaboração do tema de repercussão geral.

Não para por aí.


O Ministro Toffoli esclareceu que o acórdão anterior, de anos atrás, que foi proferido pelo STF e reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo não equiparou a união estável ao casamento. O que aquele anterior acórdão decidiu foi dar às relações estáveis entre homossexuais os mesmos efeitos que tem a união estável entre um homem e uma mulher.


Em continuação, o Ministro Toffoli salientou que a Constituição Federal trata da união estável como entidade familiar sem equipará-la ao casamento, tanto que estabelece que o Estado deve facilitar sua conversão em casamento, regulando a união estável num parágrafo e o casamento em outros parágrafos (CF, art. 226, §§ 1º, 2º e 6º quanto ao casamento, e § 3º no que se refere à união estável). Disse o Ministro: “uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa”. E realmente assim é, sem hierarquizar as entidades familiares, a Constituição Federal não equipara, não exige do legislador ordinário a equiparação, trata da união estável como “um caminho para o matrimônio”, trata da união estável e do casamento como entidades familiares distintas.


Bem indagou, então, o Ministro Marco Aurélio: “se os institutos são iguais, qual será o estímulo?”.


Realmente, não haveria nenhuma razão ao estímulo da conversão da união estável em casamento se os dois institutos fossem completamente igualados.


A Constituição Federal adotou o “dualismo”, expressão que foi utilizada por Ministro Marco Aurélio numa de suas relevantes intervenções, durante o voto que o Ministro Toffoli proferia. Por esta razão, o Código Civil seguiu o regime constitucional dual, o que, por si só, demonstra a constitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, que regula os efeitos sucessórios da união estável.


No que, por sinal, a Constituição Federal fez muito bem, e, portanto, também o Código Civil, em razão das formas distintas de constituição do casamento e da união estável. Enquanto o casamento começa por meio de um ato formal, com preparação anterior por meio de proclamas, estando os noivos conscientes e certos dos seus efeitos, do início das consequências desse ato da celebração do matrimônio, a união estável é uma relação que se forma no plano meramente fático, em que as “escovas de dentes” vão se unindo, sem qualquer formalidade, e muitas vezes sequer há certeza de sua constituição ou formação.

Por isso namoros, que não geram efeitos patrimoniais, podem ser confundidos com a união estável.


Pode-se imaginar a insegurança das pessoas se houver a tal equiparação total da união estável ao casamento. Quem namora ficará receoso de, se morrer, seus filhos virem a ter de dividir os seus bens com o parceiro.


Quem vive uma união estável, será havido, em termos de efeitos sucessórios, como se fosse casado, sem querer sê-lo. Perda da autonomia da vontade, violação à liberdade na escolha de uma das espécies de entidade familiar. Tudo será igual, onde ficará a autonomia da vontade e a liberdade?


Se houver essa equiparação, quem tem uma relação afetiva não poderá nem mesmo ter liberdade de realizar testamento, porque o parceiro será herdeiro necessário, como se fosse um filho.


E, em mais uma manifestação que provoca a reflexão, o Ministro Marco Aurélio salientou que, de acordo com o Código Civil vigente, o companheiro tem o direito de meação, pelo regime da comunhão parcial de bens, que é o regime legal, pelo artigo 1725. E, ainda, chamou a atenção para o fato de que se houver pacto estabelecendo a separação total, está será eleita pela vontade de ambas as partes, em autonomia da vontade.


Sobre argumento de que as pessoas menos favorecidas vivem em união estável em razão dos custos do casamento, observou o Ministro Toffoli que o casamento é gratuito nesses casos, de modo que a falta de recursos financeiros não impede sua celebração.


Enfatizou o Ministro Toffoli que o Código Civil vigente, quando de seu projeto, foi objeto de muitas reflexões, não é retrógrado simplesmente porque teve início de tramitação na década de 1970. Recebeu muitas emendas esse Código, foi muito bem cuidado na sua fase final na Câmara dos Deputados, foi depois da Constituição Federal de 1988 que esse projeto recebeu a emenda de introdução do art. 1790 que atribuiu direitos sucessórios à união estável, estava atento, o legislador, à Constituição.


O Ministro Toffoli rebateu também os argumentos equivocados de que o Código Civil retrocedeu em relação à legislação anterior. Não se pode comparar as circunstâncias anteriores a 2002, quando o Código Civil foi aprovado. Na legislação anterior, o casamento não gerava direitos hereditários de herança ao cônjuge como se fosse filho, por isso, a união estável podia ter direitos sucessórios iguais.


Por meio das duas leis anteriores ao Código Civil (Leis 8971/94 e 9.278/96) o companheiro tinha apenas o direito de usufruto sobre a quarta parte dos bens do falecido, em caso de existência de descendentes do falecido, e à metade, em caso de não existência de filhos, mas, sim, de pais vivos. O Código Civil acrescentou o direito do companheiro à propriedade, a título de herança, e não só ao usufruto, o que faz toda a diferença. Usufruto significa uso e gozo, é direito de aproveitar do bem, mas não é propriedade plena, não dá direito de vender o bem, é um direito com restrições. Aonde teria, então, ocorrido o retrocesso? Na não equiparação dos efeitos sucessórios da união estável aos do casamento? Ora, nem teria como isso ocorrer diante de tantos direitos que foram atribuídos ao viúvo ou viúva que foi casado, que celebrou matrimônio, quando foram escolhidos conscientemente esses direitos.


O Código Civil diferenciou os efeitos sucessórios da união estável em relação aos do casamento, em acatamento à Constituição Federal, exatamente porque são relações diferentes.


O morto não pode voltar à terra para demonstrar que a relação que teve não foi de união estável, e de outra esfera, verá seus filhos tendo de dividir toda a sua herança com um parceiro, até mesmo um namorado, confundido com um companheiro.


Como bem lembrou o Ministro Toffoli, essa pretendida equiparação, votada pelo Relator do Recurso, o Ministro Barroso, importará no seguinte: “dormir com alguém e acordar casado”. Casado sem querer, sem desejar, porque o Estado quer. É um descalabro!


Fala-se tanto em diminuição da intervenção do Estado nas relações de família, e aí viria o Estado intervir para obrigar todos que se relacionam afetivamente a assumir uma relação que teria os mesmos efeitos sucessórios do casamento.


Lembremos que o Brasil teria um ineditismo, porque outros países evoluídos e de sociedades muito parecidas com a brasileira, como a França, a Espanha, Portugal e a vizinha Argentina, não equiparam a união estável ao casamento, mantêm a liberdade das pessoas na escolha de uma ou outra relação, isso é autonomia da vontade, dão segurança jurídica às relações de afeto.


Segurança, sim, porque se pode imaginar a insegurança criada nas pessoas que se relacionam afetivamente se vierem a ser obrigadas a assumir efeitos nessas relações sempre iguais aos do casamento.


O julgamento vai prosseguir em outra data, porque, com a devida coerência e o cuidado necessário na abordagem de temas tão delicados e de consequências tão abrangentes como esse em pauta, o Ministro Marco Aurélio pediu vista do processo, considerando que o tema e as consequências da tese que vier a ser firmada são muito importantes e não podem ser objeto de julgamento sem os devidos debates, como estava sendo feito antes do voto do Ministro Toffoli. E, ainda, o Ministro Marco Aurélio solicitou a inclusão de outro Recurso em próxima pauta, em que é Relator, versa sobre o mesmo tema, voltado aos direitos sucessórios da união estável entre pessoas do mesmo sexo, abrindo uma nova janela para que a luz da justiça ilumine os Excelentíssimos e Respeitáveis Ministros do STF.

Note-se que quando o Ministro Barroso voltou a manifestar-se após o brilhante voto do Ministro Toffoli, disse que a equiparação deveria ser feita porque sem ela as pessoas são forçadas a casar. Data vênia, é exatamente o contrário, as pessoas sem aquela equiparação são livres para escolher entre casar ou não casar. Se houver a equiparação, as pessoas vão ser obrigatoriamente “casadas”.


Afinal, o afeto não pode ser confundido com interesses patrimoniais, nem as pessoas devem ser incentivadas a usar o afeto para ter benefícios econômicos.


Pensamento em sentido diverso importaria em fazer do sentimento do afeto não um causador de efeitos, mas, sim, de defeitos jurídicos.


Em resumo, “meu bem” jamais deverá ser confundido com “meus bens”.


*Regina Beatriz Tavares da Silva é Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), doutora em direito pela USP e advogada sócia-fundadora de Regina Beatriz Tavares da Silva Sociedade de Advogados.


Publicação original: O Estado de São Paulo Digital – Blog do Fausto Macedo (05/04/2017)

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